Como Transcrever Temas e Improvisações

  • Introdução


    Faz parte do aprendizado do músico a transcrição da música dos grandes mestres, que são pontos referenciais. Especificamente no campo do jazz e da improvisação, essa prática é amplamente difundida e há inúmeras edições oficiais e não oficiais, comerciais e não comerciais de materiais transcritos a partir de gravações.
    A internet possibilitou a difusão de transcrições de vários artistas, disponibilizadas online em fóruns e sites específicos. Isso permitiu que qualquer pessoa interessada em transcrever seu solo ou tema favorito pudesse compartilhar seu trabalho na rede. Uma boa parte desse material produzido tem boa qualidade, embora haja casos em que a transcrição não é fidedigna. Por esta razão buscamos documentar o processo de transcrever de forma mais eficaz.

    Objetivos


    O trabalho ora proposto pretende investigar alguns aspectos concernentes às transcrições: a) qual o processo e a metodologia mais eficiente utilizada para realizar uma transcrição em um determinado idioma musical? b) a partir de um pequena enquete (“survey”) perguntamos a colegas músicos, habituados a transcrever sobre su metodologia; c) quanto tempo é recomendado usar no trabalho de transcrição diário? Para responder a estas e outras possíveis dúvidas faremos um memorial de como foi efetuado o trabalho de transcrição e suas etapas, como o tempo gasto em cada sessão de transcrição. Além disso, o trabalho apresenta também o material transcrito propriamente dito, ou seja, o conteúdo musical da gravação apresentado em partitura, incluindo alguns tópicos gerais de análise, incluídos na própria partitura (não será feita análise descritiva do material transcrito). O material transcrito responde a muitas perguntas sobre aquele tema específico como, por exemplo, como o improvisador organizou seu material musical através do tempo transcorrido e que recursos musicais ele utilizou, que poderão ser analisados em um trabalho subsequente, com descrições textuais sobre o material musical da partitura.

    Dessa forma, transcrever solos em partituras é uma forma de pesquisar diretamente na música, pois há respostas que estão somente nos CDs, LPs e mais modernamente,nos mp3. O ato de transcrever é normalmente pouco documentado e por esta razão iremos prestar atenção às etapas do processo.


    Metodologia


    Passo 1 – Escolha da gravação a ser transcrita.

    Iremos fazer a transcrição de uma composição de John Coltrane, chamada “Countdown”. Coltrane gravou esta música pela primeira vez no álbum “Giant Steps” , em 1959. Essa versão já foi devidamente documentada e transcrita (COAN, 1995). Por esta razão escolhemos uma gravação recente do mesmo tema, feita pelo guitarrista israelense GILAD HEKSELMAN , que reside em Nova Iorque e é um dos expoentes da nova geração da guitarra de jazz. Hekselman gravou o tema “Countdown” no seu CD “Words Unspoken” (2009) . Por ser uma gravação recente, não verifiquei nenhuma transcrição na internet. Outras gravações importantes do tema por grandes artistas do gênero serão listadas mais adiante.

    Sobre o idioma musical: É conveniente escolher uma música cujo idioma nos seja familiar quanto ao repertório de técnicas empregadas porque a improvisação pode ser dividia em muitos idiomas diferentes (BAILEY,1993) Além disso, se quem transcreve pretende usar a notação musical tradicional, deverá certificar-se de sua adequação para expressar o conteúdo a ser transcrito. No nosso caso, iremos transcrever uma improvisação feita por um músico de jazz. Várias transcrições nesse estilo já foram feitas usando a notação musical standard e da mesma forma ocorrerá nessa pesquisa.



    Passo 2 – Mapeamento da gravação.

    A escolha do tema ajuda no processo de transcrição porque as improvisações no jazz são normalmente feitas sobre formas fixas, isto é, percorrendo a estrutura do tema diversas vezes. Cada percurso completo sobre a forma do tema é chamado, na linguagem jazzística, de “chorus” (LEVINE, 1995).

    A partitura do tema (que consta no REAL BOOK 1, ver bibliografia) servirá de base para mapear o processo de transcrição. Analisando o tema saberemos a extensão do “chorus” ( em número de compassos). Assim saberemos quantas “voltas” completas no tema o improvisador executou. Abaixo, a aprtitura de Countdown (John Coltrane), que consta no Real Book 1.

    Mapeamento da Gravação



    Modernamente, com o uso de softwares de áudio é possível marcar os pontos mais importantes da transcrição para auxiliar a localização de trechos.

    Os trechos são ouvidos repetidamente até que seja possível compreender as notas que, então, são imediatamente escritas em notação standard. No caso de transcrições somente de áudio, não é possível determinar com absoluta precisão a digitação empregada. Por essa razão, o “transcriber” deve experimentar no seu instrumento qual a digitação que melhor representa a articulação ouvida.

    Existem trechos mais difíceis, como por exemplo, frases tocadas muito rapidamente, que podem necessitar de uma escuta especial. Atualmente existem softwares que reduzem a velocidade, mantendo o “pitch” ( altura) normal.
    Os pioneiros das transcrições usavam discos de 33 rpm rodados em aparelhos de 16 rpm, isto é, tocando os discos na metade da velocidade, facilitando a compreensão das frases mais rápidas. Também era comum o uso de gravadores de rolo que possuíssem dois modos de velocidade. Não usei redução de velocidade na hora de transcrever, mas apenas na revisão do material (passando a limpo e digitalizando).

    Uma desvantagem do método digital de transcrição, em relação ao método antigo, usando discos de vinil, é que quem estava transcrevendo, ao tentar recolocar a agulha no disco, nunca conseguia colocá-la exatamente no mesmo ponto. Assim, o ato de transcrição forçava mais o uso da memória e do contexto onde a frase estava, isto é, aquilo que vinha antes e depois do trecho a ser transcrito. Por essa razão, aconselho o uso de marcadores precisos, porém, ao escutar, deve-se voltar para um pouco antes do trecho a ser transcrito, para acostumar-se ao contexto musical da frase.

    Uma das coisas mais úteis que experimentei nesta pesquisa foi o uso de marcadores, dentro do software de gravação. Coloquei um marcador a cada compasso, facilitando a localização de trechos e também na percepção figuras sincopadas usadas pelo improvisador.

    Mapa da Forma de Onda



    Uma marcação por compasso



    Screenshot do editor de áudio mostrando as marcações (uma para cada compasso transcorrido).
    Passo 3 – Finalizar transcrição.
    Passo 4 – Documentar as datas e o tempo gasto para cada trecho e também documentar as conclusões que foram tiradas a partir do ato da transcrição.





    Conclusão sobre o uso do tempo

    Vale mais a pena trabalhar com menor carga horária mas maior constância no trabalho do que tentar fazer tudo de uma vez só. Foram gastas apenas 6 horas em todo o processo de transcrição. Porém, mesmo que eu tivesse 8 horas corridas, ficaria muito difícil de fazer de uma vez só.



    Passo 5 – Passar a limpo e revisar a transcrição (à mão ou em partitura digital).

    Esta fase demorou cerca de 8 horas (em média), revisando a partitura com a gravação em 70 por cento da velocidade (para checar algumas notas e articulações perdidas).


    “Survey” – Questionário sobre transcrição.

    Perguntei a dois colegas músicos sobre a importância de transcrever solos e obtive algumas respostas interessantes. São eles GUSTAVO ASSIS-BRASIL, guitarrista brasileiro que vive em Boston, autor de três livros sobre técnica na guitarra e que estudou com um importante professor de jazz americano (CHARLIE BANACOS) e também JEREMEY POPPARAD, guitarrista americano que transcreveu o mesmo tema de que trata este trabalho, porém na versão tocada por Jonathan Kreisberg, além de ter realizado a editoração do álbum de composições do guitarrista BEN MONDER.

    Foram feitas 4 perguntas:

    1) Quanto tempo por dia / hora / mês você usa para transcrever solos, temas, etc?

    (Gustavo) Quando eu estava estudando com Charlie Banacos, tinha uma rotina de transcrições semanais. Fazia a transcrição completa de um solo inteiro, incluindo o tema exatamente da forma com que o artista em questão o executava. Ultimamente transcrevo quando realmente sinto a necessidade de desvendar o que está acontecendo harmonicamente ou melodicamente em uma música.

    (Jeremey) It varies quite a lot. I tend to work in bursts where I’ll transcribe many things for a week, and then not transcribe anything for a couple months.

    Observações: Os dois músicos enfatizam a importância das transcrições mas variam no ritmo aplicado ao trabalho. Jeremey tem fases intensas (“bursts”) onde ele transcreve muito e depois fica parado, enquanto Gustavo seguia uma disciplina mais rigorosa quando estudava com Banacos. Isso me faz lembrar da importância de um professor assistindo e estimulando a nossa evolução.


    2) Quanto tempo em minutos você usa em uma sessão de transcrição sem perder a concentração?

    (Gustavo) Posso ficar o tempo que for necessário e isso depende do tamanho ou nível de dificuldade da música em questão. Geralmente de 30 minutos a 2 horas, mas novamente, depende muito de vários fatores.

    (Jeremey) When I’m in one of my transcription bursts, I can do 3-4 hours usually at a time.

    Observações:Isto mostra a importância deste trabalho enquento memorial prático porque usualmente os músicos não prestam muito atenção ao tempo que estão transcrevendo e isso pode ser decisivo na manutenção de um trabalho continuado.

    3) Você transcreve com a sua guitarra (seu instrumento) na mão? Você pára a transcrição para praticar na guitarra as frases que está transcrevendo?

    (Gustavo) Geralmente transcrevo e escrevo diretamente pro papel, com a guitarra no colo e papel e lapis na estante. Estudo os solos somente após as transcrições.

    (Jeremey) Always. I’d like to be one of those people who can just do it all by ear, but I do need to check things. Also, most of what I transcribe are tunes, and the harmony is the trickiest part to figure out, so having my guitar is essential for that.

    Observações: Aqui vemos que, no caso de Jeremey, ele transcreve mais temas do que solos, buscando na guitarra checar a harmonia que está ouvindo. Gustavo prefere estudar os solos após completar a transcrição.

    4) Que efeito o ato de transcrever tem na sua música como compositor e improvisador?

    (Gustavo) Transcrições foram muito importantes para que eu conseguisse desenvolver um vocábulario mais variado. É como se fosse aprender a falar uma lingua, e com o tempo e o estudo, aprender a reproduzir os sotaques de diferentes regiões.

    (Jeremey) Definitely as a composer it’s given me a lot of new ideas for chord progressions, forms for songs that go beyond AABA, or other ideas like that. I transcribe a lot more songs than I do solos, but when I do transcribe a solo or part of a solo, I usually take away a new concept (as opposed to a specific lick) that I’ll then practice over the next few months.

    Observações: Aqui temos o testemunho da importância de transcrever para a ampliação do vocabulário musical e para que a pessoa veja o que quer praticar nos próximos meses.

    Observações Musicais

    LINK DA TRANSCRIÇÃO COMPLETA

    A exposição do tema aranjada por Hekselman foi a parte mais difícil de desvendar, especialmente a parte do compasso 9, onde uma quiáltera cria a ilusão de um pulso diferente.

    Interessante também o uso de “position playing” explorado por Hekselman (os números romandos indicam posições na guitarra).Embora não haja video da performance, suponho ser esta a digitação mais provável

    Usei as notas em “x” para notas fantasma e os “(x)” entre parênteses para as notas presumidas mas que não tenho certeza (ver MONSON, 1996).

    CONCLUSÃO

    Penso que este trabalho trouxe uma série de conclusões úteis:

    [1]É melhor trabalhar aos poucos e continuamente do que tentar fazer tudo de uma vez só.

    [2]A digitalização da partitura pode demorar tanto quanto o trabalho de transcrever se formos minuciosos nos detalhes.

    [3]Transcrever ajuda a focalizar a mente na música e no planejamento de estudos futuros, enriquecendo nosso vocabulário além de ser uma das formas mais diretas de se aprender.

    Referências Bibliográficas

    BAILEY, DEREK. Improvisation : Its Nature and Practice in Music.
    New York: Da Capo Press, 1993.
    ISBN-10: 0306805286

    BERLINER, PAUL. Thinking in Jazz : the Infinite Art of Improvisation.
    Chicago, Ill. ; London: University of Chicago Press, 1994. ISBN-10: 0226043819

    COAN, JOHN. John Coltrane Solos. Milwaukee, WI: Hal Leonard, 1995. ISBN-10: 0793527007

    LEVINE, MARK. The Jazz Theory Book. Petaluma, CA (P.O. Box 445, Petaluma, 94953): Sher Music, 1995. ISBN-10: 1883217040

    MONSON, INGRID. Saying Something : Jazz Improvisation and Interaction.Chicago: University of Chicago Press, 1996.ISBN-10: 0226534782

    (NA), NOT. The Real Book 1.Milwaukee, WI Leonard.Milwaukee,
    ISBN-10: 0634060384

    Gravações Importantes de Countdown

    John Coltrane – Giant Steps (1959)

    Brad Meldhau – Introducing Brad Meldhau (1995)

    Allan Holdsworth – None too soon (1996) – Transcrito por Tom Freyes
    (http://www.lucaspickford.com/transcountdown.htm)

    Brad Meldhau – Art of Trio 2: Live at the Village Vanguard (1998)

    Brad Meldhau – Live (2006)

    Jonathan Kreisberg – Trioing (2002) – transcrito por Jeremey Poparad
    (http://www.poparad.com/learn.php)

    Gilad Hekselman – Words Unspoken (2009)

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